Magda Ricci - "Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas (1989), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1993) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Atualmente é professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará e do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia."
Professora Edilza: Magda Ricci, o que foi afinal a Cabanagem? Quem participou dela? Eles lutaram por quais objetivos?
Magda Ricci: Começo pelo "afinal”. Ele demonstra a existência de uma Cabanagem múltipla e cheia de releituras que fundem o que se passou na antiga província do Grão-Pará entre 1835 e 1840 com as memórias e histórias sobre o que ocorreu no Estado paraense e republicano e sua longa história de 1889 até hoje. Em linhas gerais, posso afirmar que o movimento cabano eclodiu em Belém em janeiro de 1835. Ainda é fato que suas lideranças máximas foram
Felix Malcher, Antonio Vinagre e
Eduardo Angelim (foto).
Sobre quem participou do movimento não há unanimidade entre os estudiosos. É certo que houve uma participação muito ampla que incluía desde a elite local anti-portuguesa até povos indígenas bastante interiorizados e comunidades quilombolas de africanos e ou de soldados desertores fugidos. O consenso historiográfico termina quando analisamos o grau de participação e a consciência de classe entre estes participantes. Eu pessoalmente acredito em uma participação mediada por conflitos de classes e interesses políticos e econômicos que foram mudando ao longo do movimento. Gosto particularmente da idéia revolucionária enunciada por Domingos Antonio Raiol em sua clássica obra Motins Políticos. Nela o autor afirma que o movimento de 1835 equiparou-se ao ato de atear fogo em relva ressequida: a elite local brigou e colocou a província numa guerra civil, contudo, como enfatiza Raiol, esta elite não conseguiu mais controlar a revolução que iniciou e esta se espalhou por outras classes e pelos mais remotos cantos do antigo Grão-Pará e suas fronteiras com as Guianas, Venezuela e Colômbia. Houve assim um processo de aprendizagem política e revolucionária, com experiências de associação de classe ao longo da guerra cabana, que fez renascer identidades e unir povos e gentes de diversos locais, origens, culturas ou etnias.
Quanto aos objetivos dos cabanos também não há unanimidade entre os estudos sobre a cabanagem. Há pesquisadores que acreditam em uma falta de objetivos ou em objetivos pouco claros. Pessoalmente acredito que os cabanos, em seu processo de amadurecimento revolucionário, deixaram claro alguns objetivos chaves: a luta por várias garantias constitucionais (liberdade de ir e vir, direito de livre expressão de pensamento, por exemplo), além da luta em prol de garantias sociais e políticas como o fim do recrutamento obrigatório, a extinção das diferenças de tratamento e de soldos entre portugueses e brasileiros e, especialmente, a luta pelo direito à terra e à união e manutenção da família.
Professora Edilza: Como se deu a tomada de Belém pelos Cabanos?
Magda Ricci: Os cabanos tomaram Belém por duas vezes. A primeira em janeiro de 1835 e a segunda em agosto do mesmo ano. Mesmo com um mês fora do poder, eles permaneceram no governo entre janeiro de 1835 e maio de 1836. Contudo o que vale a pena lembrar é que o movimento tornou-se mais popular e ganhou amplas dimensões depois de maio de 1836. A maioria dos pesquisadores da Cabanagem acredita que tudo o que ocorreu depois da retomada de Belém em maio de 1836 faz parte de um contexto marcado pela derrocada da luta cabana. No entanto, até meados de 1837 a luta estava equilibrada e mesmo entre 1838 e 1839 havia localidades fronteiriças da Amazônia ainda em pé de guerra. É preciso deixar claro que a Cabanagem não se resume aos combates pelas tomadas de grandes cidades como Belém ou Vigia. A maioria dos combates ocorreu em comunidades interioranas e envolveu povos indígenas, africanos e caboclos. O mais grave é que muitos destes agentes - tão importantes para a compreensão dos significados da luta cabana - nem foram computados nas estatísticas de mortes ou prisões cabanas. Como saber quantos indígenas morreram ou lutaram no movimento, ou quantos quilombolas neles se envolveram se estes povos não constavam nos números oficiais da província? Eis o problema.
Professora Edilza: A tomada da igreja das Mercês foi estratégica para os cabanos?
Magda Ricci: Quanto a igreja das Mercês, o local foi importante porque ao lado existia o Trem de Guerra, que era o local onde se guardavam os armamentos e munições. Durante a segunda tomada de Belém em agosto de 1835 os cabanos tinham o Trem como um alvo estratégico. Numericamente os revolucionários eram maioria, mas suas armas e munições eram escassas. O Trem de Guerra era o local onde a tomada da cidade se decidiria. A luta em frente à Igreja dos Mercedários foi sangrenta, pois além de demorar horas para os cabanos derrubarem o portão do Trem, lá dentro foi armada uma emboscada: os soldados anti-cabanos estavam postos no andar superior com todas as armas e munições e, quando finalmente os cabanos invadiram a parte inferior do prédio derrubando o forte portão de entrada, lá do alto os anti-cabanos atiram e mataram tantos cabanos quantos puderam até que os corpos dos mortos fizeram volume suficiente para os cabanos ainda vivos escalassem a altura do segundo piso. Conclusão: foi uma cena dantesca. Além disso, foi neste processo que os anti-cabanos mataram o maior líder cabano. No contexto da tomada do Trem caiu morto Vinagre e assumiu o poder Eduardo Angelim. Certamente foi um momento marcante para os cabanos.
Professora Edilza: Como se organizaram os governos Cabanos em Belém? Qual o motivo de sua derrota?
Magda Ricci: Sobre os governos cabanos mais uma vez gostaria de citar uma metáfora retirada de Raiol. Este estudioso afirmava que as lideranças cabanas se assemelhavam a Saturno, o deus mitológico que devorava os próprios filhos e que o maior problema no Grão-Pará era uma grave crise de autoridade. Minhas pesquisas me mostram que os cabanos tiveram maiores problemas para se manter no poder do que propriamente para tomar a cidade de Belém. Mal sobe ao poder e o primeiro líder cabano Félix Malcher tenta controlar seus ajudantes e soldados sem muitos resultados. Não foi necessário mais do que dois meses para que Malcher já estivesse muito mal visto por pessoas chaves como Vinagre seu comandante de Armas. Foi na disputa com Vinagre que Malcher acaba morrendo. Nas ruas da capital as tropas cabanas se dividiram e esta divisão ocorreu muitas outras vezes pelo interior da província. As disputas pelo poder e a crise de autoridade política levavam a crises internas entre os cabanos e suas lideranças. Por outro lado o segundo comandante anti-cabano Francisco José de Souza Soares Andrea foi muito perspicaz no uso político das desavenças internas dos cabanos. Prometendo “anistia informal” ou seja, não abrir processos contra líderes cabanos que mudassem de lado e se aliassem aos anti-cabanos, Andréa levou muitos comandantes a traírem seus antigos aliados. É necessário lembrar que, como um todo a guerra cabana não foi nada convencional: morreu muito mais gente por fome, doenças, envenenamento e por armas brancas do que em batalhas formais e por tiros. As batalhas terrenas ou navais foram menos freqüentes do que a guerrilhas nos rios e igarapés amazônicos, com suas emboscadas, envenenamento de rios e ataques surpresas. Esta guerra camuflada foi favorável aos cabanos até certo momento. Quando Andréa começou a cooptar antigos aliados cabanos, estes passaram a ser os alvos das emboscadas e ataques de guerrilha. O pano de fundo de todo este processo de traição foi marcado por uma guerra que se estendia além do desejável por todos e a certeza de que os cabanos estavam se isolando no interior da província paraense. Neste processo que começou a ganhar corpo em 1836 e se solidifica em meados de 1837 os cabanos acabaram sendo derrotados.
Professora Edilza: A Cabanagem pelo seu entendimento, já foi tratada pelos governos estaduais adequadamente? Já conseguimos registrar, debater e divulgar a sua memória?
Magda Ricci: A Cabanagem já foi motivo de muita disputa política.
Sua memória já levou governadores como Jader Barbalho ou prefeitos como Edmilson Rodrigues a disputas políticas sobre quem seria o descendente direto da luta e do governo cabano. O movimento cabano também inspirou belíssimos monumentos como o
Memorial da Cabanagem, ou ainda a
Aldeia Cabana, foi motivo para uma reforma educacional de base em Belém e para tantos outros projetos políticos. Tudo isto faz parte do legado cabano, de sua legenda e não propriamente de sua história. No entanto o maior legado cabano não está nos governos e em seus atos (embora estes devam ter respeito, ou ao menos consideração, por esta memória). A herança cabana mais evidente e rica para mim está na lucidez com que o povo paraense percebe continuidades seculares entre seu mundo e o dos cabanos de 1835. Ainda hoje vários pontos de pauta dos cabanos estão por ser discutidos seriamente. Cito ao menos dois: a questão do acesso mais amplo e democrático à terra e a do respeito a diversidade étnica e cultural. Hoje já avançamos muito no regime democrático e esta luta felizmente estamos consolidando, mas ainda há muito a fazer em prol de um Pará e uma Amazônia mais humanizada e justa.
"Obrigada pela sua entrevista minha amiga."(Profª. Drª. Edilza Fontes)